Contam-se muitas estórias sobre quem teria sido Zé Pelintra quando encarnado. Alguns dizem que viveu em Pernambuco, outros afirmam que viveu no Rio de Janeiro.
Porém, não podemos nos esquecer de que dentro da Linha dos Malandros, como nas demais Linhas de Trabalho da Umbanda, estão agrupados espíritos que tiveram encarnações diferentes entre si. O ponto central é sabermos que esses Espíritos não estão presos a seus antigos nomes e sim, que foram agrupados a partir de suas afinidades vibratórias e evolutivas e de suas especialidades (campos de atuação).
Nomes Simbólicos: Zé Pelintra, Zé Malandro, Zé do Côco, Zé da Luz, Zé de Légua, Zé Moreno, Zé Pereira, Zé Pretinho, Malandrinho, Camisa Preta, Camisa Listrada, Sete Navalhas, Malandro do Morro.
Algumas Entidades Femininas que se manifestam nesta Linha: Maria do Cais, Maria Navalha.
Dia da semana: Não há um dia específico, tendo em vista que a Linha tem um campo de atuação muito vasto e se manifesta tanto na Direita quanto na Esquerda. Os Malandros que trabalham na cura costumam ser mais associados ao sábado, regido por Saturno e Urano, planetas relacionados ao Orixá Obaluayê. Já os que trabalham no corte de demandas têm uma associação mais direta com a terça-feira, regida por Marte e relacionada aos Orixás Ogum, Yansã e Omolu.
Campo de atuação: Limpeza energética, purificação e equilíbrio; quebra de preconceitos; desapego; corte de magias negativas; abertura de caminhos para a prosperidade em geral (espiritual e material); cura espiritual, emocional, mental e física.
Ponto de Força: O Ponto de Força dos Malandros é na subida de morros, nas esquinas e encruzilhadas, aos pés de coqueiros e até em cemitérios, dependendo do seu campo específico de atuação.
Cor: Branco/preto; branco/vermelho; vermelho/preto.
Guias ou colares: Suas guias ou colares podem ser de vários tipos, tais como: confeccionadas com coquinhos; de contas de porcelana vermelhas e pretas, ou vermelhas e brancas, ou ainda pretas e brancas; de sementes (olho de cabra, olho de boi, obi branco); de pedras; de palha da costa com búzios.
Elementos de trabalho: Baralho, moedas, dados, palitos, palha da costa, pedras, pembas, sumos de ervas, barbante, linhas, fitas, búzios, sementes, côco, água de côco, terra, dendê, azeite de oliva.
Ervas: Quebra demanda; arruda; guiné; comigo-ninguém-pode; aroeira; palha da costa; levante; anis estrelado; algodoeiro; tapete de Oxalá; alecrim; jasmim; manjericão roxo; folha de bambu; folhas de laranja e de limão; folha de café; folha e semente de cacau; folha de beterraba; rama de cenoura; café em grão e em pó; urucum; folha de pitanga; folhas de palmeira e de coqueiro; folha de bananeira; tiririca; barba de velho; raízes; cipós; cabelo e palha de milho; louro; losna; agrião; coentro; orégano; noz moscada; pára-raio; espada de São Jorge; espada de Santa Bárbara; lança de São Jorge; mentas (vários tipos de hortelã); boldos (vários tipos); ervas amargas; salsinha.
Sementes: Olho de boi, olho de cabra, obi branco (ou noz de cola).
Fumo/defumação: Charutos, cigarrilhas, fumo de corda, ervas enroladas na palha.
Pedras: Variam, dependendo da forma de manifestação da Entidade Malandro.
Para os que vêm como Baianos: Quartzo branco leitoso; Cristal; Jaspe Vermelho; Granada; Citrino; Pirita; Topázio Imperial. No geral, as pedras brancas, vermelhas e amarelas- embora eles possam manipular muitas pedras diferentes, de acordo com a necessidade do trabalho.
Para os que vêm na Esquerda: Ágata Preta, Turmalina preta, Vassoura da Bruxa, Ônis, Quartzo Fumê, Mica Preta.
Para os curadores: Pedras brancas (Quartzo Branco transparente e leitoso, Calcita Ótica, Topázio Branco); Pedras índigo (Lápis-Lazúli, Sodalita) e ou Pedras violetas (Ametista, Cacochinita, Fluorita Lilás).
FONTE: Angélica Lisanty, livros: “Os Cristais e os Orixás”, 2088, páginas 83/85; “Elixir de Cristais”, 2006, páginas 101/113, ambos da Madras Editora.
Flores: Rosas e cravos vermelhos e brancos; flores vermelhas e amarelas.
Oferendas:
1- Um côco verde (separar a água); ervas; flores vermelhas e ou brancas; 7 linhas brancas e 7 pretas; 7 fitas vermelhas e 7 amarelas; frutas; 7 moedas de qualquer valor; 7 velas bicolores branco/preto. Forrar o chão com as ervas. Retirar a água do côco e reservar. Abrir o côco, tirando uma tampa, e colocar dentro dele as moedas. Colocar o côco no meio das ervas e em volta dele dispor, sempre em círculos: as flores; as frutas; as linhas, alterando as cores (branco/preto) e as fitas, também alternando as cores (vermelho/amarelo). Circular tudo com a água do côco. Em torno, firmar as velas e pedir prosperidade espiritual e material, em todos os sentidos. Quando as velas queimarem, retirar todo o material, caso a oferenda seja feita na Natureza.
2- Lascas de uma rapadura; lascas de fumo de rolo; um copo de melado de cana (ou oito pedaços pequenos de cana); um punhado de fubá; 7 sementes de olho de boi; 7 sementes de olho de cabra; 1 vela bicolor branco/preto; uma folha de bananeira lavada e cruzada com azeite de oliva. Abrir a folha de bananeira e sobre ela dispor as lascas de rapadura e as de fumo. Por cima, ir derramando o melado, fazendo círculos no sentido horário. Se optar por pedaços de cana, eles devem ser colocados da mesma forma. Circular com as sementes de olho de boi e depois com as de olho de cabra. Derramar o fubá sobre toda a oferenda, com a mão direita, em círculos horários. Na frente, firmar a vela e pedir limpeza, equilíbrio energético e cura (espiritual, mental, emocional e/ou física). Recolher tudo quando a vela queimar, se fizer a oferenda na Natureza.
Incensos: Quebra demanda, sete ervas.
Saudação: Salve os Malandros!
Cozinha ritualística:
1- Carne seca com abóbora: Dessalgar a carne seca, cortar em cubos e cozinhar. Guardar a água do cozimento. Refogar a carne já cozida com um pouquinho de dendê, azeite de oliva, cebola, alho, tomate e pimentão amarelo picados. Reservar. Na água do cozimento da carne, colocar para cozinhar pedaços de abóbora cortada em cubos, com o cuidado de não deixar amolecer demais. Juntar os pedaços de abóbora cozidos ao refogado da carne, misturar delicadamente e refogar por uns minutos, em fogo mínimo, com a panela tampada. Temperar com molho de pimenta, orégano e cheiro-verde (temperos a gosto).
2- Farofa de carne seca – Ingredientes: 350 g de carne seca; um pouquinho de dendê; 1 cebola grande picada; 2 dentes de alho amassados; 2 xícaras de farinha de mandioca torrada; cheiro-verde picadinho; 2 pimentas vermelhas picadinhas (retirar as sementes); orégano. Preparo: Deixar a carne seca de molho, de véspera, e ir trocando a água. Cozinhar e desfiar quando ela estiver já fria. Numa panela média, aquecer o dendê e dourar o alho e a cebola. Juntar a pimenta e refogar mais um pouquinho. Acrescentar a carne seca, deixando por alguns minutos, em fogo baixo e com a panela tampada, para que a carne absorva o sabor dos temperos. Juntar a farinha, mexer e retirar do fogo. Acrescentar os temperos.
3- Farofa de farinha de milho amarela com carne seca, mandioca, abóbora e pimentas .
4- Doce de abóbora feito com pedacinhos de gengibre e enfeitado com lascas de rapadura.
5-Cocada mole; doce de côco; doce de abóbora com côco.
6- Bolinhos de tapioca: Ralar um côco seco, juntar a água do côco, triturar bem no liquidificador. Colocar a tapioca de molho nessa mistura, até inchar. Fazer os bolinhos e grelhar ou assar. Servir com lascas de rapadura.
7-Feijão preto cozido sem sal e coberto com côco seco fatiado e milho amarelo.
UMA VISÃO de FORA da RELIGIÃO de UMBANDA
Texto: O Arquétipo do malandro: Zé Pelintra como imagem do “trickster” nacional- POR IGOR FERNANDES- FONTE: O site da Rubedo (Estudos Interdisciplinares de Psicologia Analítica)
Zé Pelintra: origem e história― Personagem bastante conhecido, seja por frequentadores das religiões onde atua como entidade, seja por sua notável malandragem, Seu Zé tem sua imagem reconhecida como um ícone, um representante, o verdadeiro estereótipo do malandro, ou porque não dizer, da malandragem brasileira e mais especificamente, carioca. Não raro, encontram-se pessoas que o conhecem de nome e pela malandragem, mas não sabem que este é uma entidade do Catimbó e da Umbanda; outras já o viram retratado inúmeras vezes, mas não sabiam que se tratava de “alguém” e também encontraremos os que o conhecem apenas como entidade e desconhecem sua origem e história, estes, porém, menos frequentes. O fato é que a figura de Zé Pelintra, de uma forma ou de outra, permeia o imaginário popular da cultura brasileira e é retratada de diversas maneiras. Por exemplo, como nos explica Ligiéro:
Na década de 1970, Chico Buarque cria sua Ópera do Malandro. Para o cartaz do espetáculo teatral, o artista Maurício Arraes utiliza a figura de Zé Pelintra mesclada aos traços faciais de Chico Buarque em um número típico de minstrelsy norte-americano, tal como protagonizado no teatro de revista e no cinema por Al Johnson [...] (LIGIÉRO, 2004, p. 142).
No início da década de 1990, o cineasta Roberto Moura lança “Katharsis: histórias dos anos 80”, com Grande Othelo no papel de Zé Pelintra, e este seria o último longa-metragem desse emblemático ator negro, lembra Ligiéro (2004). Até mesmo a figura de Zé Carioca, personagem de Walt Disney, teria sido inspirado em Seu Zé. Ligiéro conta a história:
Em 1940, Walt Disney fez uma viagem ao Brasil como parte do programa “política da boa vizinhança” criado pelo governo norte-americano – para pesquisar um novo personagem tipicamente brasileiro. Na ocasião, foi levado com sua equipe de desenhistas para conhecer a Escola de Samba da Portela. Naquela noite, a nata do samba reuniu-se, como fizera alguns anos antes com a visita de Josephine Baker ao Rio de janeiro. Lá estavam as figuras mais importantes do mundo do samba – Cartola, Paulo da Portela, Heitor dos Prazeres... Conta-se que foi Paulo – falante e elegante – quem realmente impressionou Walt Disney e o inspirou a criar o personagem Zé Carioca. Na ocasião, o sambista não estava todo de branco, tinha apenas o paletó nessa cor, mas foi o suficiente, pois essa peça passou a ser a marca de Zé Carioca [...] (Ibidem, p. 108).
E mais adiante:
O Zé Carioca do Disney, que passou a ser um símbolo do Rio de janeiro e do próprio Brasil no exterior, fuma charuto e tem um guarda-chuva que ele maneja como uma bengala. Parece que quem esteve na Macumba da Mãe Adedé foi Walt Disney, e não Josephine Baker, e que lá viu o Zé Pelintra incorporado, pois a maneira gingada de andar e o jeito irônico de seu personagem foram realmente captados da alma do nosso malandro. É difícil acreditar que ele não soubesse também que o papagaio é um dos animais consagrados a Exu (Ibidem, p.109).
Seu Zé está sempre representado, seja em figuras desenhadas, seja em estatuetas, de terno branco de linho ― e veremos que provavelmente para a malandragem não era à toa, segundo Ligiéro (2004), ― chapéu de palhinha com uma faixa vermelha contornando-o, gravata vermelha e sapato bicolor. Essa é sua representação na Umbanda, o típico malandro – figura que possivelmente ganhou esse estereótipo a partir da figura de Zé Pelintra.
O terno de linho branco tornou-se o símbolo do malandro por ser vistoso, de caimento perfeito, largo e próprio para a capoeiragem. Para o malandro, lutar sem sujá-lo era uma forma de mostrar habilidade e superioridade no jogo de corpo. Ao contrário dos executivos de sua época, que tentavam imitar os ingleses, o malandro não usava casimira, tecido pouco apropriado para o clima úmido dos trópicos. Seu Zé destacava-se pela elegância e competência como negro [...]. Numa época em que os negros e brancos viviam praticamente isolados, apesar da existência de uma numerosa população mestiça nas grandes cidades brasileiras, vamos observar que a figura do malandro torna-se representativa da dignidade do negro deixando para trás a idéia de um negro “arrasta-pé”, maltrapilho ou simples trabalhador braçal (Ibidem, p. 101-2).
Mas afinal, qual a origem de nosso personagem?
Seu Zé torna-se famoso primeiramente no Nordeste seja como frequentador dos catimbós ou já como entidade dessa religião. O Catimbó está inserido no quadro das religiões populares do Norte e Nordeste e traz consigo a relação com a pajelança indígena e os candomblés de caboclo muito difundidos na Bahia.
Conta-se que ainda jovem era um caboclo violento que brigava por qualquer coisa mesmo sem ter razão. Sua fama de “erveiro” vem também do Nordeste. Seria capaz de receitar chás medicinais para a cura de qualquer mal, benzer e quebrar feitiços dos seus consulentes.
Já no Nordeste a figura de Zé Pelintra é identificada também pela sua preocupação com a elegância. No Catimbó, usa chapéu de palha e um lenço vermelho no pescoço. Fuma cachimbo, ao invés do charuto ou cigarro, como viria a ser na Umbanda, e gosta de trabalhar com os pés descalços no chão.
De acordo com Ligiéro (2004), Seu Zé migra para o Rio de Janeiro, onde se torna, nas primeiras três décadas do século XX, um famoso malandro na zona boêmia carioca, a região da Lapa, Estácio, Gamboa e zona portuária.
Nessa época, período de desenvolvimento urbano e industrial, a vida da população afrodescendente foi profundamente transformada. Havia um fluxo migratório intenso de sertanejos em direção à capital nacional em busca de melhores condições de vida. Nascem as primeiras favelas, empurrando para os morros os migrantes dos antigos cortiços derrubados para a Reforma Passos.
Nesse contexto, Seu Zé poderia ter conseguido fama como muitos outros, pela sua coragem e ousadia, obtendo aceitação pelos que se encontravam em situação como a sua. Segundo relatos históricos, Seu Zé era grande jogador, amante das prostitutas e inveterado boêmio.
Quanto à sua morte, autores discordam sobre como esta teria acontecido. Afirma-se que ele poderia ter sido assassinado por uma mulher, um antigo desafeto, ou por outro malandro igualmente perigoso. Porém, o consenso entre todas essas hipóteses é de que fora atacado pelas costas, uma vez que pela frente, afirmam, o homem era imbatível.
Acontece com Zé Pelintra um processo inverso ao que aconteceu com outros famosos malandros. Muitos destes foram esquecidos ou enterrados como indigentes. Foram lendários para uma geração. Entretanto, com o passar do tempo acabaram sendo esquecidos. “Para Zé Pelintra a morte representou um momento de transição e de continuidade”, afirma Ligiéro, e passa a ser, assim, incorporado à Umbanda e ao Catimbó como entidade, “baixando” em médiuns em cidades diversas que nem mesmo teriam sido visitadas pelo malandro em vida, como Porto Alegre ou Nova York, por exemplo.
Todo esse relato em última instância não tem comprovação histórica garantida e o importante para nós nesse momento é o mito contado a respeito dessa figura.
Incorporação na Umbanda como Exu- Seu Zé é a única entidade da Umbanda que é aceita em dois rituais diferentes e opostos: a “Linha das Almas” (caboclos e pretos-velhos) e o ritual do “Povo de Rua” (Exus e Pombas-Giras), definitivamente outro tipo de freguesia.
Enquanto em um existe [...] uma ética cristã com propósitos de cura dos males do corpo e proteção espiritual pela invocação tanto dos guias espirituais afro-ameríndios quanto das entidades máximas do catolicismo, incluindo o Espírito Santo, Jesus Cristo, a Virgem Maria e muitos outros santos desse populoso panteão, [...] no outro [...] a chamada moral cristã é deixada de lado permitindo que se dê vazão aos instintos primordiais na procura de soluções para os problemas terrenos oriundos de pequenezas cotidianas (LIGIÉRO, 2004, p. 37-38).
Como afirma Birman (1985), “povo de rua lembra facilmente a massa anônima que circula pela cidade, os trabalhadores, as pessoas comuns que ocupam o espaço público nas suas idas e vindas”. Na expressão “povo de rua”, fica claro o binômio casa-rua como opostos. O primeiro marca as relações familiares e o segundo o sem-domínio, dando a sensação de incontrolável, o marginal. E é dessa maneira que freqüentemente são vistos os Exus principalmente na Umbanda. “Representam, pois, o avesso da civilização, das regras, da moral e dos bons costumes”, continua. A partir disso, Birman (1985) nos traz uma visão também interessante: “a identificação do exu com o domínio da rua gerou um tipo que é muito popular na umbanda: o exu Zé Pilintra, figura gêmea do malandro carioca”.
No ritual do Povo de Rua, o clima é sempre de festividade. É marcado pela dubiedade esse tipo de ritual, pois embora as pessoas que lá estão estejam à procura de uma consulta séria para resolução de seus problemas, acabam por participar do clima festivo e alegre que é constituído, entre outras coisas, de danças e bebidas. Nessa cerimônia, não só os médiuns incorporados dançam com seus guias, mas também os clientes e/ou fiéis (ou mesmo assistência, como são chamadas as pessoas que freqüentam uma gira na Umbanda seja para só ver seja para consultar um espírito) são convidados a dançar e, se for íntimo de alguma entidade, até beber com esta. E nesse clima são realizadas as consultas, no meio de muita música e alegria, por mais séria que seja a questão do consulente. Como bem observou Ligiéro (2004), “Seu Zé, com seu humor iconoclasta, nos lembra de que na origem da tragédia havia Dionísio, era preciso brincar com a vida para, assim, combater com eficácia a própria morte”.
Zé Pelintra e o arquétipo do trickster― Antes de começarmos a discorrer sobre estas duas imagens, seria prudente dizer que o presente artigo não tem pretensão em reduzir o malandro Zé Pelintra em um arquétipo do inconsciente coletivo. Fazê-lo seria destruir ou negar toda a diversidade de visões de mundo que o ser humano construiu ao longo de sua história. Seria tentar atribuir valores a essa diversidade em detrimento de uma imaginável e inexistente suposta classificação de que culturas são as “melhores” e quais se aproximam mais da “realidade”. No entanto, a realidade de uma cultura certamente não é a mesma de outra. Inclusive dentro da mesma cultura podemos achar visões de mundo diferente. Não existe olhar sem tradução, não existe olhar neutro que seja isento o suficiente de valores para julgar quais elementos culturais prestam ou não dentro de uma determinada sociedade.
É interessante também notar como se encontram resistências no Brasil, principalmente por parte das elites (“intelectuais e pessoas esclarecidas em geral”), em assumir ou assinar, como prefere Segato, um lugar às tradições e ao pensamento afro-brasileiro que, de acordo com a pesquisadora, poderiam estar gerando um pensamento para o país. Muito embora, em algumas ocasiões, essa mesma elite faça uso dessas tradições.
Como estrangeira, [...], estive muitas vezes diante da clara evidência do menosprezo com que intelectuais e pessoas esclarecidas em geral tratam a tradição religiosa afro-brasileira. [...] O deslumbramento permanente e sempre renovado de pesquisadores e cronistas estrangeiros com estes cultos contrasta com sua falta de prestígio, na atualidade, na cena nacional. Esse menosprezo das elites pode ser um efeito do racismo à brasileira, isto é, um racismo marcado pelo medo da familiaridade (SEGATO, 1995, p. 15).
Segato (1995) explica esse racismo à brasileira diferenciando-o do racismo nórdico, por exemplo, que exclui o negro justamente por percebê-lo como um “outro”, alguém bruscamente diferente e desconhecido. Aqui, entre nós, o negro é discriminado na vida pública justamente pela razão oposta: teme-se ser “o mesmo”, “a ameaça é a possibilidade de desmascaramento da mesmidade”, conclui a autora. Seria, então, essa a razão pela qual a mitologia dos orixás passa totalmente desconhecida para a maioria dos brasileiros que, ao invés de procurar conhecê-la e familiarizar-se com esse sistema de pensamento, prefere embarcar nas águas “brancas” da mitologia greco-romana, celta ou ainda, viking. Não que essas mitologias não tenham seu valor ou sejam pobres, e aqui mais uma vez ressalta-se a inutilidade da atribuição de valores às culturas, muito pelo contrário, são mitologias também ricas e complexas, mas esses sistemas de pensamento dizem mais respeito aos povos onde foram propagados do que a nós. Zeus tinha um significado muito específico na Grécia e provavelmente não nos chegou com o mesmo significado, pois não vivemos as mesmas questões humanas e não as concebemos como os gregos as concebem e vivem. Quando esse mesmo deus é “importado” pelos romanos, apesar da ponte que se faz na mitologia “greco-romana”, chegou lá com atributos muito específicos também para o povo romano, que inclusive o chama agora de Júpiter. Quando essa tradição chega ao Brasil, já chega impregnada de traduções em cima de traduções, valores sobrepostos a outros e, frequentemente, Zeus e Júpiter se tornam o mesmo deus, pasteurizado. Não captamos a essência nem de Zeus e nem de Júpiter. Só podemos saber deles através de livros que muitas vezes não têm uma assinatura confiável.
Por que então não falamos de Zé Pelintra, Ogum ou Iemanjá, ao invés de nos reconhecermos em Hermes, Marte ou Afrodite, só pra citar alguns “reconhecíveis”? Estes sim estão impregnados na cultura brasileira, fazem parte do nosso dia-a-dia, estão “vivos” e “atuantes” na nossa sociedade. Muito mais fácil reconhecer Zé Pelintra nos bares e cabarés e casas de jogos do nosso país do que Hermes na Lapa carioca. Os gregos deviam ter alguma forma de se comunicar com seus deuses. Os gregos também faziam oferendas aos seus deuses. Mas se quisermos “falar” com um deus grego, talvez fique difícil pela escassez de canais de comunicação e, provavelmente, não saberíamos como fazê-lo. Um grego talvez fosse necessário no mínimo para uma iniciação em sua cultura. No entanto, “dialogar” com Zé Pelintra, Ogum, Iemanjá ou qualquer outra entidade do panteão afro-brasileiro, sejam estas os Orixás do Candomblé ou as entidades da Umbanda como caboclos ou pretos-velhos, já é muito mais acessível e aqui não se está falando de, necessariamente, ir a um terreiro conversar com uma entidade dessas incorporada em um médium, mas sim de reconhecer suas “caras” no cotidiano da nossa cultura.
Porém, devemos tomar cuidado para não pasteurizar nossos próprios deuses. Sobre isso Segato constata:
Não ignoro que tem havido um certo grau de banalização e vulgarização dos conhecimentos próprios do mundo religioso afro-brasileiro. Descrições superficiais e estereotipadas, uma divulgação massiva e jornalística dos aspectos mais aparentes e folclorizados da religião raramente acompanhados dos conhecimentos sutis e complexos que lhes servem de suporte; traduções esquemáticas e redutoras do sistema dos “orixás” para outros sistemas de arquétipos como, por exemplo, os signos do zodíaco ou o panteão dos deuses olímpicos. [...] Mas esse barateamento não é exclusivo desse mundo, e se deu também, por exemplo, com as tradições orientais, assim como as esotéricas (Ibidem, p. 16-7).
Como exemplo, podemos citar o yoga que na Índia é um sistema filosófico, um modo de vida, mas que no Brasil e demais países ocidentalizados virou, de maneira geral, ginástica.
Portanto, a proposta desse trabalho está em oferecermos ao Zé Pelintra o posto de representação do trickster no Brasil. Se por trickster está entendido ser, como o próprio Jung designou, aquele que subverte a ordem; o embusteiro; o trapaceiro; a sombra social, então estamos falando de Zé Pelintra. E mais uma vez aqui não se trata da crença numa ou outra religião, mas sim da figura, da imagem que este representa, pois como foi visto, existem as pessoas que sabem ou já ouviram falar em Seu Zé e suas histórias, mas não sabiam que este era uma entidade das religiões afro-ameríndias, para que não fique de fora o Catimbó, berço dessa personalidade. Não se trata, tampouco, de fazermos a tradução de trickster por Zé Pelintra ou ainda que se fale em arquétipo do Zé Pelintra, mas sim de tê-lo como imagem desse arquétipo, pois este é mais próximo de todos nós e para brasileiros é muito mais fácil reconhecê-lo, seja para fins didáticos seja para ter simplesmente a imagem, do que a qualquer outra figura que se possa querer pôr em seu lugar. Seu Zé tem em sua personalidade todas as características do trickster. Como nos mostra Ligiéro (2004), Zé Pelintra tem a característica “de assumir quase simultaneamente o sagrado e o profano, o sério e o sacana”, características essas que muitas vezes são usadas para desmoralizá-lo e classificá-lo como vulgar. Mas o que é o trickster senão também o vulgar?
O malandro encarnado por Zé Pelintra, explica Ligiéro, “se coloca miticamente como um quase-herói, um vencedor que triunfa ao burlar a ordem estabelecida [...]” e implementa a sua própria ordem caótica. E o autor faz então, uma pergunta chave:
[...] se comprovadamente, os malandros desapareceram, ou ainda, se tiveram um final no mínimo trágico, fica a pergunta: Como permanecem de forma insistente no inconsciente do povo brasileiro manifestando aspectos dessa energia em vários campos das atividades religiosas, esportivas e artísticas? (LIGIÉRO, 2004, p. 177).
E respondendo a sua própria pergunta, Ligiéro fala no arquétipo do malandro que nada mais é do que o nosso conhecido trickster “à brasileira”:
Creio que a permanência do modelo clássico do malandro, como algo superior das culturas negras e mestiças brasileiras, seja também decorrente do trabalho político e filosófico de admiradores e guardiões da cultura afro-brasileira. [...] Percebemos que artistas, esportistas e religiosos foram capazes de absorver o arquétipo do malandro e seu arsenal mítico sem assumirem a personalidade de marginal, abdicando dos seus traços politicamente incorretos, como o nefasto machismo e o seu aspecto agressivo e arruaceiro. Eles fizeram de sua arte/religiosidade uma articulação do mundo ancestral africano com a pós-modernidade (Ibidem, p.177-8).
Ou seja, complementando, estaríamos, assim, falando de como pode se dar a vivência desse arquétipo do malandro hoje. Pois, como se considera para qualquer outro arquétipo, a identificação cristalizada com o mesmo é que se torna perigosa. Em outras palavras, não precisamos ser essencialmente embusteiros, trapaceiros ou subvertedores da ordem, por exemplo, a todo o momento, para ter a vivência do trickster, ou como estamos preferindo enfatizar ao longo desse trabalho, da malandragem.
Em tempos de descrença nos partidos políticos, nas religiões e revoluções, Zé Pelintra, “em suas múltiplas versões, tem se mostrado um guia maleável e exemplar”. Apesar de pouco conhecido das elites – ou ignorado – e combatido pelas religiões de poder, podemos ver sua “influência” em vários setores da população. Parece que alguns políticos cristalizaram a identificação com a pior parte da malandragem se esquecendo que essa, quando trapaceava era em favor de uma classe que estava (e continua) sendo oprimida por essa mesma elite. Por outro lado, os desfavorecidos ainda recorrem à malandragem para tentar a sobrevivência em um país onde a mobilidade social é quase nula e freqüentemente encontram em Seu Zé e Ogum, o Orixá guerreiro, seus santos de devoção. O fato é que “essa entidade”, Ligiéro diz,
[...] energiza as almas convalescentes de gente do povo e da classe média, dos milhares de desempregados e dos batalhadores da economia informal: camelôs, carregadores, baianas, flanelinhas, guardas de trânsito, pivetes, vendedores de balas nos sinais, prostitutas jovens e velhas... (Ibidem, p.185).
E seja ela entendida como um santo, força ou arquétipo, é imprescindível notar o quão brasileira ela é, nos falando assim quem somos, de onde viemos e, quem sabe, abrindo nossos caminhos.